De acordo com Judite, um dos maiores dilemas enfrentados pelo Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB diz respeito ao fato de as populações não serem assistidas pelo Estado por meio de uma política pública ou social. "Há 20 anos estamos tentando negociar com o Estado a possibilidade de criar uma política em defesa dos direitos dos atingidos por barragens. Depois de tanta insistência, no final do mandato do governo Lula foi criado um decreto que define o conceito de atingido por barragens. Ocorre que esse decreto ainda não foi implementado”, relatou.
Em sua avaliação, Judite diz que o Ministério de Minas e Energia "favorece as empresas construtoras de barragens e tem um olhar negativo em relação aos atingidos. (...) Nas negociações entre Estado, movimento dos atingidos e as empreiteiras, percebemos que as empresas são as mais favorecidas, pois são elas que dão sustentabilidade ao próprio governo e ao Ministério de Minas e Energia”, reiterou.
Em virtude do Dia internacional de luta contra as barragens, entre os dias 13 a 15 de março, o MAB promoveu uma jornada de atividades em diversas capitais brasileiras.
IHU On-Line – Quais são hoje as populações mais atingidas pela construção de barragens?
Judite da Rocha – Atualmente os ribeirinhos, os pescadores e os extrativistas são as populações mais atingidas pelas barragens. A estimativa do Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB é de que, nos próximos anos, mais de 50 mil famílias sejam atingidas por conta da construção da usina de Belo Monte. O nosso maior dilema hoje é o fato de não termos conseguido definir qual é o conceito de atingido, pois ele varia de acordo com os impactos de cada barragem construída.
IHU On-Line – Quais são as principais reivindicações dos atingidos por barragens?Judite da Rocha – Nossa luta principal é para que a barragem não seja construída, pois sabemos quais são as consequências. Entretanto, quando temos certeza de que uma hidrelétrica será construída, lutamos para que os direitos dos atingidos sejam garantidos.
Ao longo desses anos, conseguimos que algumas famílias tivessem seus direitos garantidos. Nossa luta é para que os atingidos tenham qualidade de vida, acesso à moradia adequada econdições de ter uma vida digna. Também propomos uma discussão a respeito da revisão do modelo energético brasileiro, da implementação do decreto dos atingidos e da não privatização das estatais.
IHU On-Line – É possível contabilizar o percentual de famílias atingidas pelos empreendimentos energéticos? Quais barragens causaram maior impacto ambiental e social no Brasil?Judite da Rocha – De acordo com um levantamento preliminar do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra, 12 mil famílias atingidas por barragens não conseguiram readquirir suas terras. Mas, hoje, os atingidos pelos diversos empreendimentos energéticos passam de 150 mil famílias. Certamente a região amazônica será a mais atingida em função das novas hidrelétricas previstas para os próximos anos.É provável queo número de atingidos venha aumentar.
Entre as barragens que causaram maior impacto, destaca-se o complexo do rio Madeira, no estado de Rondônia; a barragem de Estreito, que está localizada entre o Maranhão e o Tocantins; a Usina Foz do Chapecó, em Santa Catarina; e a barragem de Acauã. Belo Monte também entrará para a lista das hidrelétricas que causaram muitos impactos sociais. Nós continuamos afirmando: "Não a Belo Monte!”, porque não há necessidade de essa hidrelétrica ser construída.
As barragens geram problemas sociais, ambientais e estruturais que não serão contornados com o passar dos anos. O fato de as famílias ficarem sem casa, sem terra, sem comida, sem trabalho, sem ter um local para plantar vem contribuindo para o aumento da pobreza no país.
IHU On-Line – Qual é a postura do Estado brasileiro em relação ao atingidos por barragens? Existe alguma política pública ou política social para as pessoas que perdem suas residências em decorrência desses empreendimentos?Judite da Rocha – Há vinte anos estamos tentando negociar com o Estado a possibilidade de criar uma política em defesa dos direitos dos atingidos por barragens. Depois de tanta insistência, no final do mandato do governo Lula foi criado um decreto que define o conceito de atingido por barragens. Ocorre que esse decreto ainda não foi implementado.
O Ministério de Minas e Energia, responsável pelo modelo energético, favorece as empresas construtoras de barragens e tem um olhar negativo em relação aos atingidos. Tanto é que no final do governo Lula foi aprovado um relatório de violação dos direitos humanos dos atingidos por barragens, o qual apresentou 16 violações gravíssimas, mas nada foi feito.
Para solucionar essa problemática, propomos que um órgão do governo assuma a questão dos atingidos e garanta o cumprimento dos seus direitos. Por enquanto, nenhum ministério é responsável por tais populações.
Nas negociações entre Estado, movimento dos atingidos e as empreiteiras, percebemos que as empresas são as mais favorecidas, porque são elas que dão sustentabilidade ao próprio governo e ao Ministério de Minas e Energia. Por isso defendemos que o governo e as empresas se responsabilizem pelas populações atingidas.
IHU On-Line – Como avalia a postura do governo, de ampliar o projeto energético brasileiro e construir novas barragens nos próximos anos?Judite da Rocha – O governo não vai abrir mão da expansão do projeto energético e da construção de novas hidrelétricas na região amazônica, uma vez que elas fazem parte do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC. Portanto, quando se constrói uma barragem, há uma interligação com outros projetos desenvolvimentistas, tais como as hidrovias, ferrovias e a exploração da biodiversidade da região amazônica. O governo apoia e subsidia essas iniciativas.
Considerando esse modelo de desenvolvimento que não leva em conta as populações atingidas e o meio ambiente, questionamos o discurso do governo de combater a pobreza. Percebemos que, nas regiões onde são construídas as barragens, aumenta o número de pessoas vivendo em condições precárias.
IHU On-Line – Qual é a proposta do MAB para a Rio+20? Como o movimento compreende um dos principais temas a ser abordado na conferência: a economia verde como alternativa para erradicar a pobreza?Judite da Rocha – Temos clareza de que o governo tem um discurso e uma pré-disposição de fazer o debate ambiental e social na Rio+20. Na prática, não é isso o que está acontecendo. O governo está muito mais preocupado com a mensagem que vai passar para os outros países do que com outra coisa, quer dizer, preocupa-se com a imagem de um Brasil desenvolvido, que tem um modelo energético limpo. No entanto, não mostra o passivo social gerado por esse modelo energético.
Assim, pretendemos mostrar esses impasses na Rio+20 e questionar a propaganda da energia limpa. Na verdade, ela não é sequer limpa, haja vista que dá origem a vários problemas sociais. Falamos em sustentabilidade, mas observamos, por trás da construção das hidrelétricas, uma vasta destruição do meio ambiente e das populações.
IHU On-Line – Em que consistiria uma reestruturação do projeto energético brasileiro?
Judite da Rocha – Nossa proposta é utilizar energia renovável, porque o Brasil tem um potencial de recursos naturais. Mas esse discurso não avança dentro do governo. Hoje sabemos que a construção de barragens é como a exploração de ouro antigamente: é uma atividade muito lucrativa para as empresas, porque o BNDES disponibiliza financiamento a juros baixíssimos.
A sociedade como um todo é atingida pelo atual modelo energético. Querdizer, não são apenas os atingidos pela construção das barragens que sofrem com a situação. Sabemos da importância da energia, mas também sabemos como impacta negativamente na vida de várias famílias que são atingidas pela construção das hidrelétricas.
Por Eleonora de Lucena
As políticas de austeridade perpetuam o desastre econômico. E há uma lógica por trás disso: as pessoas ricas e poderosas se beneficiam da crise, que provoca mais concentração de renda e de poder político. A análise é do geógrafo marxista David Harvey, 76.
Professor de antropologia da Universidade da Cidade de Nova York, ele fala da ascensão do pensamento de direita e espera a emergência mais sólida de movimentos contra a desigualdade. "Até pessoas muito ricas, como Warren Buffet, reconhecem que a desigualdade foi longe de mais", diz.
Harvey que esteve no Brasil, no final de fevereiro, para o lançamento de seu livro "O Enigma do Capital".
Como o sr. analisa a crise atual?
As crises não são acidentes, mas fundamentais para o funcionamento do sistema. O capital não resolve as crises, mas as move de um lugar para o outro. Elas mudam geograficamente. Muda também a parte da economia que a crise atinge.
Que mudanças ocorrerão?
China e emergentes, como Brasil, têm se saído bem. América do Norte e Europa não vão bem. Ninguém sabe quanto tempo essa situação vai perdurar. Minha hipótese é que a China está além do limite e terá problemas difíceis em breve, o que significa que a crise pode se mover da América do Norte para a China. Lá há superprodução, superinvestimento e vai começar a haver pressões fortes de inflação.
A Grécia virou um protetorado das finanças depois desse acordo?
Não parece que esse acordo possa ser implantado. A Grécia terá que declarar moratória e deixar o euro. Sair do euro pode ser traumático no curto prazo. A Argentina decretou moratória e voltou mais forte. É preciso sair do euro para fazer o que a Argentina fez: desvalorizar a moeda, o que tornaria a Grécia facilmente competitiva nos mercados internacionais.
Qual o impacto dessa crise na política?
A visão da direita é muito nacionalista. Há a emergência do nacionalismo não só na Grécia, mas em outras partes, o que pode se mover para ditaduras. A saída da esquerda é muito mais voltada para a tentativa de reavivar a economia através de projetos sociais, o que não é possível com o pagamento dessa enorme dívida.
A direita quer a ditadura?
Eles não vão dizer isso, mas é a única maneira que terão de estabelecer a alternativa deles. Tudo vai depender do balanço das forças que existem no país.
Quem vai ganhar e quem vai perder?
Quem esta perdendo até agora é o povo. Há uma transferência de riqueza do povo para os bancos. O povo está nas ruas em muitos países, inclusive nos EUA, contra a maneira pela qual os governos estão favorecendo os bancos, não o povo.
Nos seus livros o sr. diz que o capitalismo provoca concentração de renda. Essa crise aumentará as diferenças entre ricos e pobres?
A qualidade cresce numa crise, não decresce. Nos EUA os dados mostram que a desigualdade cresceu de forma notável nos últimos três ou quatro anos, no curso dessa crise. Não é apenas desigualdade de renda que cresce, mas a desigualdade de poder político. Desigualdade política segue desigualdade de renda e se tem um círculo vicioso.
O aumento da desigualdade social é desestabilizador para os mercados; há um limite econômico para a desigualdade. Mas também há um limite político. Vivemos hoje movimentos contra os níveis de desigualdade social que existem em todo o mundo.
Mas a direita cresce como vemos na Espanha, em Portugal, na Finlândia, não é?
Sim. O curioso é que não é só a direita que está crescendo, mas um movimento nacionalista que também existe na esquerda. Diz que o grande problema que temos é a economia global na qual as grandes corporações e a classe capitalista levam vantagens.
Uma das respostas políticas é tentar cortar as ligações entre a globalização e os mercados globais e tentar sair com um programa de autonomia local e de autodeterminação local --uma demanda que está na esquerda e na direita. É parte das respostas à desigualdade social tremenda que foi em parte produzida pelos mercados livres e pelo livre comércio mundial.
O nacionalismo vai crescer não importa a coloração política?
É preciso distinguir entre movimentos por autonomia local ou regional ou autonomia nacional. Esses movimentos ficarão muito fortes. Se vão se tornar totalmente nacionais é uma pergunta em aberto. Há uma versão de direita dessa autonomia local e uma versão de esquerda. No início a antiglobalização era um dos slogans da esquerda.
Isso pode levar o mundo no rumo de uma guerra?
Gerará mais tensões. Podemos ver conflitos militares regionais. Há muitas tensões políticas regionais no mundo hoje que podem eclodir como conflitos militares. A possibilidade de conflitos é forte em áreas como o Oriente médio.
Mas não há hipótese de uma guerra mundial.
Vejo conflitos locais, não o tipo de guerra que tivemos nos anos 1940. Por exemplo, o Brasil tem uma versão disso nos conflitos nas favelas do Rio de Janeiro. Historicamente nacionalismo leva a lutas políticas entre Estados-Nações. Os conflitos serão locais e localizados nas cidades. Vejo um novo tipo de conflito político que é o conflito para ver quem controla a cidade.
Qual sua previsão para as eleições neste ano nos EUA, na França e no México?
É extremamente imprevisível. Não temos idéia para onde o processo político vai se mover. É como a Bolsa _não se sabe quando vai para o alto ou para baixo. Politicamente não se sabe se vai para a direita ou para a esquerda. Em todos esses casos é difícil prever.
Mesmo no caso dos EUA? Obama não vai vencer?
Não tenho certeza disso. Não creio que as pessoas saibam o que fazer para enfrentar a crise. Dizem qualquer coisa para tentar se eleger. Há uma falta de idéias de como lidar com essa situação de crise.
E o que deve ser feito para enfrentar a crise?
É preciso que haja um movimento político que enfrente a questão sobre o que deve ser o futuro do capital. Não vejo nenhum movimento fazendo isso de forma coerente. É isso que tento estimular com os meus escritos e as minhas falas.
E o que o sr. defende?
Há dois elementos cruciais. Primeiro, acredito que os trabalhadores precisam ter o controle do seu processo produtivo. Trabalhadores deveriam se auto-organizar em fábricas, locais de trabalho, nas cidades.
A ideia é que associação de trabalhadores possa regular a sua própria produção e as tomadas de decisão. A segunda parte é que as associações de trabalhadores precisam coordenar suas atividades entre si para definir o que cada um deve produzir. Isso requer um mecanismo de coordenação, o que é diferente dos mercados. Isso requer uma espécie de organização racional para a tomada de decisões sociais, divisões de trabalho. Como organizar isso é uma grande questão.
Isso não é uma tarefa do Estado?
Historicamente o Estado tem que fazer isso, mas muitas pessoas não confiam no Estado. E há boas razões para não confiar no Estado. É preciso pensar numa forma alternativa de coordenação e organização.
Isso porque a experiência de controle do Estado não foi muito boa na antiga URSS e em outros países?
Isso não é inteiramente verdade. Muitas coisas correram bem mesmo na URSS. A China tem uma boa direção central para a economia e vai muito bem em termos de desenvolvimento. É interessante notar que no capitalismo a Coreia do Sul e Taiwan, que tem mecanismos de planejamento centralizado muito fortes, estão bem. Não é verdade que o planejamento central não funciona.
Então por que o sr. não acha que o Estado seria o instrumento para organizar a economia?
É preciso alguma coisa como o Estado. Mas o Estado contemporâneo é muito corrupto na maior parte do mundo. Segundo, ele foi desenhado essencialmente para benefício do capital, não em benefício do povo. É preciso redesenhá-lo de forma completamente nova.
No seu livro "O Enigma do Capital" (2010) o sr. propõe a criação de um "partido da indignação" contra um "partido de Wall Street". Qual a situação da sua proposta? O que pode ser mudado pelas pessoas que protestam nas ruas?
Há muitas diferenças entre os movimentos pelo mundo em termos da sua força e dos seus objetivos. No Chile o movimento é muito forte e concentrado nos estudantes. Nos EUA o movimento Occupy é pequeno e fragmentado e não está maduro em termos de força política. Nos próximos seis meses isso poderá ser mudado e teremos a chance de ver uma forma diferente de política emergindo nos EUA, baseado no movimento Occupy.
O sr. pode explicar melhor?
Temos um sério problema de democracia e o movimento Occupy está preocupado com uma forma democrática alternativa democrática de tomada de decisões. Há dificuldade de transformar a noção de uma assembleia numa escala nacional. Deverá ocorrer uma convenção dos movimentos Occupy nas cidades americanas no verão.
Esse movimento poderá ser usado pelos democratas nas eleições?
Sim. Os democratas têm o problema interessante: como usar o movimento Occupy sem chegar muito perto, porque seria muito radical.
No seu livro "O Novo Imperialismo" (2003) o sr. fala da questão da hegemonia norte-americana. Também diz que o consumismo é a regra de ouro da paz americana. Como vê essa questão hoje, quando o consumismo está abalado pela crise? Como o imperialismo se expressa hoje?
A questão do imperialismo não pode ser muito conectada com a da hegemonia. Não é certo dizer que os EUA são hoje o único poder imperial. Há muitos diferentes poderes que estão exercitando um papel hegemônico, às vezes em regiões.
Um exemplo é o Brasil, que é muito poderoso e hegemônico na América do Sul. Isso significa que o Brasil é imperialista? Há alguns sinais que põem ser conectados dessa forma, de ter políticas imperialistas. Mas prefiro chamar de exercício de hegemonia. A questão é de como essa hegemonia se exercita.
O consumismo é ainda a chave de outro para a paz social nos EUA?
Austeridade reduz o padrão de vida e o consumo cai. Há um problema real de demanda no mercado. Por causa disso a produção não cresce. E porque a produção não cresce o emprego não cresce e o desemprego aumenta. O que a austeridade faz é tornar as coisas ainda piores.
Há muitas evidências disso na crise de 1930. As políticas da austeridade naquele período foram um desastre. Mas EUA e na Europa estão engajados na política da austeridade e isso está perpetuando a crise. Mas há uma lógica por trás na perpetuação da crise: as pessoas poderosas e influentes se beneficiam da crise.
Os ricos estão indo muito bem na crise. Portanto, perpetuar a crise é uma forma de perpetuar seu crescente poder e sua crescente riqueza. Dessa perspectiva de classe a crise não é nada ruim. De um ponto de vista racional de organização da economia capitalista, austeridade é simplesmente maluco.
No seu livro "The Limits to Capital" (1982) o sr. descreve a dinâmica e as contradições do capital. Como analisa isso hoje? O poder das finanças vai crescer com a crise?
Sim. O capital financeiro é hoje importante como nunca foi. A medida geral de como uma economia está se recuperando ou não é muito dada pelo valor dos bancos e de como eles estão se saindo. A recuperação financeira é absolutamente crucial, o que significa fornecer mais ativos para o setor bancário.
Há limites para o capital?
Um dos comentários interessante que Karl Marx fez sobre o dinheiro é que ele pode aumentar sem limites. Então quando é preciso mais dinheiro o Fed aparece com um trilhão de dólares e joga no mercado. Portanto não há limite para a capacidade de criar o poder do dinheiro. Há limites em muitas outras áreas: recursos naturais, produção de commodities etc. Mas não há limite para o dinheiro, o que significa que não há limite para o poder do capital financeiro.
Qual sua visão do Brasil e do governo de Dilma Rousseff?
É um país muito dinâmico e tem havido algumas tentativas --com Lula e acho que continuadas por Dilma_ para atacar as questões de desigualdade. Mas há um longo caminho pela frente. De um lado há essa política de tentar aliviar a desigualdade. De outro há a política de repressão, de ocupação e militarização das favelas.
Em "O Novo Imperialismo" o sr. diz que a privatização é o braço armado da acumulação por espoliação. O Brasil recentemente privatizou aeroportos. O que pensa disso?
Depende das condições da privatização. Em geral, patrimônio publico dado ao setor privado de alguma forma beneficia o setor privado. Não obter o valor real desse patrimônio para o domínio publico, abrir mão de um patrimônio comum por uma quantia muito baixa faz os capitalistas acumularem valor com base nisso. De certa forma é um presente ao capital.
E sobre o processo no Brasil?
A privatização depende muito da condição, da forma de fazer. Na maior parte do mundo o movimento pela privatização ocorreu em áreas como fornecimento de água, eletricidade, aeroportos. Para mim é apenas uma forma de apoiar o capital provendo novas formas de o capital obter mais lucros.
Para o governo é a única forma de ampliar aeroportos a tempo da Copa.
Quando se tem um Estado que é muito burocrático e corrupto talvez seja melhor transferir para o setor privado.
Como marxista como explica que o neoliberalismo continue sendo dominante, mesmo após a crise?
Há sinais de mudança. Sinais de um pensamento progressivo. Mesmo os círculos conservadores começam a ver que não podemos mais continuar do mesmo jeito. Há maior interesse pelas idéias sociais, por Marx. Mas há um longo caminho pela frente.
É uma questão de quem tem o poder de produzir e controlar o discurso dominante, a academia, a mídia. A mídia nos EUA nunca publica [temas marxistas] porque considera antipatriótica a linha marxista. Então há muita repressão a essas idéias. Na Europa é diferente.
As ideias sobre igualdade não são vistas como utópicas?
Pode ser. Mas mesmo o pensamento dominante está começando a reconhecer que o nível de desigualdade que hoje existe não pode ser sustentado, que alguma coisa precisa ser feita para mudar. Mesmo os muito ricos, como Warren Buffet, reconhecem que a desigualdade foi longe de mais. É o início de uma mudança na opinião dominante.
Como o sr. avalia a posição do Brasil no mundo?
O Brasil exerce muita influência no mundo. Na América Latina em geral houve uma experiência de neoliberalismo e um descontentamento geral. Há mais abertura na América Latina para as mudanças progressistas do que em outras partes do mundo. O que acontece aqui é muito excitante, mas é muito diferente de país para país. Há Hugo Chávez, o movimento no Chile, Evo Morales. Há um movimento geral na direção de desenvolver uma via alternativa, na qual o capital funciona mais preocupado com justiça.
O que o sr. acha de Chávez?
Não sou muito fã. Acho que é muito autoritário e personalista. Mas muitas coisas progressistas acontecem na Venezuela, muitas estão acontecendo na Bolívia.
E na Argentina?
Perón é um fenômeno complicado. E Kirchner é parte disso. Mas não se vê o discurso de austeridade. Os EUA estão dominados por esse discurso bobo sobre austeridade.
E qual o resultado disso?
O futuro da América Latina caminha para um poder regional. Não é que a América Latina tenha se tornado anticapitalista, mas busca uma forma diferente de operar o capitalismo, mais preocupada com o social. Kirchner, por exemplo, está investindo em educação, ciência e tecnologia de uma forma que não acontecia no passado. E é muito positivo.
O sr. está otimista?
Sou otimista no sentido de que acredito que as pessoas em algum ponto vão reconhecer que há limites sérios sobre como o capitalismo pode funcionar e que é preciso considerar alternativas de modo de vida. Otimista no sentido de que há um senso de justiça e equidade por aí que deve ser capitalizado politicamente.
E há a emergência de movimentos sociais que começam a dizer "basta" e que precisamos reconstruir o mundo com um novo modelo social de como se viver. De outro lado, a volatividade de hoje é tão grande que as pessoas podem tomar direções malucas no lugar de sensíveis. É possível ver isso politicamente em muitos países europeus e nos EUA também.
E para onde isso pode levar?
Autoritarismos de vários tipos e sérias rupturas na economia. Isso já está prolongando a crise por razões desnecessárias, por causa da ideologia neoliberal da austeridade.
O poder nos EUA vai diminuir no século 21?
Não há dúvida de que os EUA continuarão a ser um poder significativo para o mundo, mas não da forma que foi nos anos 1970 e 1980. Haverá poderes hegemônicos regionais. O Brasil será um deles. China, Índia, Alemanha serão outros. Esses poderes regionais competirão entre si e os EUA serão um desses hegemônicos regionais.
Qual o seu projeto profissional hoje?
Acabei de lançar "Rebel Cities", que trata de movimentos revolucionários urbanos. Fiz uma campanha sobre o 1º volume de "O Capital" e agora estou trabalhando no 2º volume e partes do 3º. Pretendo transformar esses textos mais compreensíveis para estudantes e outras pessoas que tentam entender do que Marx tratava. Estou muito contente. Entre os alunos há pessoas do movimento social. Fiquei muito impressionado com a resposta.
Recebi o email de um sindicalista de 79 anos que me disse que esteve toda a sua vida na política e que sempre quis ler "O Capital". Agora que está aposentado, com o meu curso, finalmente conseguiu.
Por Eduardo Sales de Lima,
do Brasil de Fato
A mineradora brasileira Vale foi eleita, dia 26 de janeiro, a pior corporação do mundo no Public Eye Awards, conhecido como o “Nobel” da vergonha corporativa mundial. Criado em 2000, o Public Eye é concedido anualmente à empresa vencedora – escolhida por voto popular em função de problemas ambientais, sociais e trabalhistas. A empresa foi denunciada por provocar, da Serra de Carajás, no sul paraense, ao porto de Itaqui, em São Luís, no Maranhão, devastação ambiental, trabalho escravo na cadeia de produção do aço, exploração sexual infantil, além da invasão de terras indígenas, quilombolas e camponesas.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Darci Lermen, prefeito de Parauapebas (PA) pelo PT e recorrente questionador da atuação da mineradora na região, fala sobre seus enfrentamentos com a empresa. Lermen, que cumpre o último ano de seu segundo mandato, questiona o que caracteriza como “monólogo de dois lados” e denuncia um débito de até R$ 800 milhões por parte da empresa para com o município. Segundo ele, os “ovos de ouro” dessa galinha não estão nas mãos da população atingida pela atividade de mineração.
Brasil de Fato – Você encerra este ano o seu segundo mandato como prefeito de Parauapebas. Que balanço você faz da atuação da Vale na região?Darci Lermen – Nossa cidade surgiu muito em função do Projeto Carajás. Inicialmente criou-se um grande apartheid nessa relação Carajás-Parauapebas. Havia uma separação muito grande entre os dois núcleos, em que um era o núcleo dos ricos e o outro, dos pobres, das prostitutas, dos garimpeiros. Depois é que viemos nos transformar na cidade de Parauapebas. Fato é que sempre houve um distanciamento muito grande da Vale com relação às comunidades no Pará. É uma empresa admirada por muita gente, mas também tem o lado a ser denunciado, o de que ela tem praticado atos que não podem ocorrer, como implantar certas atividades na região sem ao menos comunicar as comunidades, mesmo a legislação não permitindo isso.
E qual tem sido o papel dos órgãos estaduais e federais, que têm atribuições de fiscalizar as ações da empresa, sobretudo as que causam danos aos trabalhadores, às comunidades e ao meio ambiente?Diversos órgãos federais têm multado a Vale, além da própria Justiça do Trabalho. Ela foi condenada a não sei quantos milhões nessa área trabalhista. Na questão do meio ambiente, ela tem sido multada de forma recorrente. O problema todo é que eles têm bons advogados, grandes escritórios que trabalham para ela, e estão confiantes de que nada vai acontecer. Nós, a prefeitura, já os acionamos de tudo quanto é forma, a ponto de já termos pedido há um tempo a “caducidade” [perda de um direito do titular sobre algo devido a uma renúncia, inércia, fatos ou decisão judicial], uma vez que a Vale não estava nem respondendo aquilo que o Ministério das Minas e Energia, através do DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral) solicitava pra ela.
Caducidade em relação a que?
Em relação ao Projeto Carajás. Que ela perderia a concessão do Projeto Carajás, inclusive isso foi assinado pelo DNPM, em Belém (PA). Mas em Brasília isso foi revertido no final, não sei por que meios.
Quando foi isso?
Foi no ano passado. O processo de caducidade cabe nesse caso. De repente pode até não ser o que todo mundo quer. Ninguém quer tirar o Projeto Carajás da Vale, mas queremos que eles se aproximem mais do nosso povo, que respeitem o meio ambiente, que facilitem uma maior inserção da sociedade no projeto efetivamente.
O ex-presidente da empresa, Roger Agnelli, fez uma denúncia séria contra você?
Foi uma carta escrita por ele a Dilma. Ele nos acusou que tinha passado R$ 700 milhões e que não tínhamos feito nada. Ele é um grande desinformado. Na área de educação, por exemplo, nossas salas de aula hoje estão todas climatizadas, professores e alunos, todos terão notebooks; quadros digitais na sala de aula a partir de maio; quadras cobertas, tudo isso a ponto de termos a melhor educação do Estado do Pará, o melhor Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) do Pará. Temos obrigação de fazer isso pelo recurso que temos. Não é nada demais, nós aplicamos o recurso. Além disso, estamos terminando de construir o hospital, que fica pronto em maio, que será o maior e mais bem equipado do Estado. Na agricultura, se você observar os assentamentos, por exemplo, só com as associações dos assentados eu assinei convênios no valor de R$ 8 milhões, só contando a parte da mecanização. Fora saúde, educação, transporte. A desinformação dele [Roger Agnelli] é fruto e o sinal mais claro e evidente da distância que a Vale tem em relação a Parauapebas, do que é a empresa e do que é o povo.
Mas ele conseguiu te atingir politicamente?
Sim, ele conseguiu.
Essa questão tem relação com o plebiscito do Pará?
Ali a briga foi quase pessoal. Porque institucional não foi. Foi uma briga muito pessoal que acabou tendo contornos grandes e por conta disso teve uma investigação muito grande na prefeitura, no Tribunal de Contas. Mas graças a Deus nós temos uma contabilidade muito bem arrumada, tranquila. E hoje tudo é transparente, está na internet, então não tem porque desconfiar disso. Agora, se ele dissesse os milhões que está devendo ao município... Ele devia fazer isso, ao invés de acusar um ou outro prefeito. Por que não falam da dívida deles? Dos royalties? Isso sim é roubo. É o que eles fazem e não é só conosco, mas com todos os municípios onde estão inseridos. São bilhões e bilhões que a Vale se adunou. Dizem: é a maior empresa mineradora do mundo. Claro! Lucram em cima das populações atingidas! A prefeitura de Parauapebas junto ao DNPM fez um convênio para poder fiscalizar a Vale, e achamos vários “buracos”. O primeiro é que nós fizemos uma avaliação para comparar o preço que ela pratica no porto de Itaqui (Maranhão), que é o preço “FOB” (Free on Board). Significa o preço que ela paga pelo minério livre do frete lá no Porto de Itaqui. Cruzamos isso com o balanço patrimonial dela na Receita Federal com os boletos da CFEM (Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Federais, o royalty) e vimos que havia uma grande diferença. Só ali achamos uma diferença de R$ 400 a R$ 500 milhões. Por que o que ela faz? Ela tem duas empresas, uma nas Ilhas Cayman (Vale Over seas), e a outra, que é a Vale International, na Suíça. Por meio dessas empresas, ela vende a ela mesma para majorar os preços lá fora. Essa é uma prática que tem gente que diz que é correta, mas a nosso ver é uma tremenda sacanagem que fazem com o nosso estado.
Mas isso é legal?
Até pode ser, mas é de uma imoralidade muito grande, principalmente para um estado pobre como o nosso. Outra diferença grande que encontramos foi na composição da CFEM. Na fiscalização percebemos que eles [Vale] estavam contabilizando como frete toda a movimentação dentro da mina. Essa movimentação interna na mina é custo de produção e não de frete. Para compor os 2% do CFEM, pode-se se descontar de PIS, PASEP, COFINS e desconta também o frete. Mas essa movimentação interna não é frete, é custo de produção. Então, já há depositado em juízo R$ 800 milhões no que se relaciona a esses dois eixos (preços majorados a partir de suas empresas no exterior e contabilização do frete). Ainda existem problemas menores em relação ao manganês, ao ferro. A esses processos cabem recurso da Vale, mas estão sob júdice. Então, quando nos acusam, era só chegar no município e olhar. Poderia ter percebido que a cada 80 dias temos que construir uma escola nova, de 12 e 16 salas por conta da migração. Quando assumi o município havia pouco mais de 80 mil habitantes, hoje temos em torno de 200 mil.
E por conta dessa migração impulsionada pela mineradora, há recorrentes problemas com drogas, exploração sexual infantil. Como a prefeitura e outros órgãos públicos têm agido?
Nós estamos agindo com nossos recursos próprios. Há programas na área da saúde que são federais, na área da assistência social também. Mas temos programas com recursos próprios, como o trabalho com os alcoólatras que vivem na rua. Fizemos um programa grande chamado Êxodo. Recolhemos as pessoas na rua, concedemos alimentação, banho, e depois proporciona-se a elas o trabalho. E isso tem dado resultado numa certa medida.
E por conta dessa migração impulsionada pela mineradora, há recorrentes problemas com drogas, exploração sexual infantil. Como a prefeitura e outros órgãos públicos têm agido?Nós estamos agindo com nossos recursos próprios. Há programas na área da saúde que são federais, na área da assistência social também. Mas temos programas com recursos próprios, como o trabalho com os alcoólatras que vivem na rua. Fizemos um programa grande chamado Êxodo. Recolhemos as pessoas na rua, concedemos alimentação, banho, e depois proporciona-se a elas o trabalho. E isso tem dado resultado numa certa medida.
Com o seu mandato chegando ao fim, qual a sua preocupação nessa relação da Vale com o município?
É fundamental que a sucessão siga nessa luta. Quero ressaltar que nós não queremos destruir a galinha dos ovos de ouro. Mas queremos participar mais dessa riqueza produzida em nossos municípios. Nosso povo tem o direito. Ainda dizem que vão construir uma siderúrgica em Marabá. Onde estão os investimentos? Até agora, o que se aumentou foram só os buracos.
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Entrevista com Dom Pedro Casaldáliga feita por Eleonora de Lucena, jornalista da Folha de S. Paulo, publicada na ADITAL.
Mais um episódio da guerra no campo. Assim Dom Pedro Casaldáliga define o assassinato dos líderes extrativistas José Claudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo da Silva, ocorrido no fim de maio, no Pará. Fundador da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), o bispo ganhou notoriedade internacional ao denunciar brutalidades de madeireiros, policiais e grandes proprietários rurais no período da ditadura militar.
Agora, aos 83 anos, o bispo emérito de São Félix do Araguaia (MT) segue fazendo o seu diagnóstico do país.
Qual o significado do duplo assassinato no Pará?
Casaldáliga - A morte de José Claudio e da Maria do Espírito Santo não é um fato isolado. É mais um episódio da guerra no campo. É fruto da impunidade e da corrupção marcantes sobretudo no Pará, campeão em violência no campo, em desmatamento e queimadas.
Qual é a situação dos conflitos agrários?
Casaldáliga - Simplificando, com uns traços panorâmicos, poderíamos dividir o nosso Brasil em três. Primeiro, o Brasil hegemônico, que está a serviço do agronegócio, depredador, monocultural, latifundista, excluidor dos povos indígenas e do povo camponês. Fiel à cartilha do capitalismo neoliberal. Uma oligarquia política tradicionalmente dona do poder e da terra.
Quem fica do outro lado?
Casaldáliga - O povo da terra indígenas, camponeses da agricultura familiar, ribeirinhos, extrativistas, sem terra consciente de seus direitos e organizado em diferentes instâncias de sindicato, de associação e respaldado por grupos militantes solidários do movimento popular, das pastorais sociais, de intelectuais e artistas, de universitários, de certas ONGs.
Quem é o terceiro grupo?
Casaldáliga - É uma maioria média desinformada ou mal informada, que não vincula as lutas do campo com as lutas da cidade, no dia a dia da sobrevivência. Que não percebe ainda que a reforma agrária é uma luta de todos.
Qual é o papel do Estado?
Casaldáliga - O Estado continua omisso frente a três grandes dívidas: a reforma agrária, a política indigenista, a política doméstica e ecológica do consumo interno.
Como é o movimento dos trabalhadores rurais hoje em comparação com o período da ditadura militar?
Casaldáliga - Hoje, evidentemente, o Brasil está numa democracia, pelo menos formal. As organizações do povo da terra têm uma relativa liberdade de ação. O MST é um caso emblemático. Os governos do PT pelo menos não satanizam essa luta.
Qual é o papel da Igreja Católica nesse movimento? Como a orientação mais conservadora do Vaticano interfere?
Casaldáliga - A Igreja já não deve assumir, como nos tempos da ditadura, uma atuação de suplência abrangente. A Igreja deve continuar sendo -e talvez mais do que nunca, pela ambiguidade oficial e internacional- uma Igreja servidora e profética. Que não se omita nunca ante o clamor dos pobres.
Procurador da República descreve região em que foram assassinados ambientalistas: um território sem lei e sem Estado, onde pecuaristas e desmatadores impõem sua lógica selvagem
Entrevista a Manuela Azenha, no, Viomundo
O dr. Ubiratan Cazetta é procurador-chefe da Procuradoria da República no Pará. Cabe a ele, portanto, representar o Estado brasileiro num momento em que o avanço da fronteira agrícola torna mais graves os conflitos locais, especialmente os relacionados à terra e à exploração de outros recursos naturais. Segundo levantamento da Comissão Pastoral da Terra, foram 212 assassinatos na região desde 1996, média de 14 execuções por ano. Para falar sobre a situação na região, a repórter Manuela Azenha conversou com o procurador esta tarde. Segue a entrevista:
A ministra-chefe da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Maria do Rosário, afirmou que o governo não tem estrutura para proteger todos os ameaçados de morte na Amazônia.
Ubiratan Cazetta – Essa informação é rigorosamente correta. Se nós formos trabalhar com um número de um pouco mais de mil pessoas ameaçadas, de fato não há estrutura policial, nem na Polícia Federal, nem nas estaduais, para deslocar algo em torno de 2 mil policiais para fazer esse acompanhamento. A questão não é, efetivamente, atacar isso diretamente, dando uma segurança a essas pessoas. É fazer uma análise adequada de cada caso, verificar quais destes que estão hoje correndo risco efetivo. Você pode ter [informações sobre] pessoas incluídas nessa lista que não estão tão atuais. Tem de fazer uma depuração e verificar onde ainda existe a tensão e nesses casos, sim, atuar. Mas isso não é suficiente.
Tem de identificar, entre essas mais de mil pessoas, qual é a relação de fundo e, aí sim, dar uma resposta definitiva. Investigar os motivos pelos quais as pessoas são ameaçadas, indo atrás da zona de tensão. No caso do Zé Cláudio, além de apurar o homicídio em si, tem de apurar os fatos que ele vinha denunciando e ir nas pessoas vinculadas a isso. Assim, você consegue dar uma resposta à sociedade em relação a essa situação de ameaça de morte, porque vai acabar com essa sensação de impunidade. Sendo bem objetivo, é necessário verificar quais dessas pessoas correm risco de vida hoje e dar segurança a essas pessoas. E em relação a todos esses mais de mil casos, identificar os fatos que estão por trás disso. Verificar qual o motivo daquelas pessoas atuarem numa região de conflito — e resolver o conflito. Resolvendo o conflito, se resolve a situação das ameaças.
Essa região do Sul do Pará é chamada de polígono da violência. Por que há tanto conflito ali?
Ubiratan Cazzeta – É uma conjunção de fatores. Primeiro, e mais evidente, você tem uma ausência do Estado. Não tem estrutura que possa atender aos diversos problemas sociais que você encontra ali. A grande maioria dos municípios tem uma estrutura policial, quando existe, muito pequena, composta por de 8 a 10 soldados, desestruturados, sem nenhum tipo de treinamento adequado. Muitas vezes não tem juízes, promotores locais. Do ponto de vista do Estado formal, da repressão, existe uma ausência do Estado que torna a impunidade quase uma regra.
Você soma a essa falta de estrutura do Estado o fato de que esses locais são de fronteiras agrícolas. Estão expandindo as atividades econômicas de todas as matrizes: pecuária, extração irregular de madeira, produção de carvão. Então, você tem um processo econômico muito forte, que não é acompanhado da presença do Estado para fazer um controle desse processo. Para resolver isso, tem de promover efetivamente a presença do Estado e o acompanhamento antecipado desses movimentos socioeconômicos. O Estado tem de chegar antes — e não ficar correndo atrás, como tem sido nos últimos trinta anos.
Ruralistas vaiaram a notícia da morte do casal de extrativistas durante a sessão da Câmara que acabou aprovando as mudanças no Código Florestal. O que o senhor acha dessas mudanças e o senhor acha que isso é um sinal de que as pessoas que estão por trás dessa violência estão com o poder político no Brasil?
Ubiratan Cazzeta – O primeiro recado que se extrai dessa vaia é que a polarização da discussão do Código Florestal tornou evidente o desprezo pela vida humana. Nós não podemos continuar a discutir uma lei tão importante como o Código Florestal, que deveria disciplinar nossa relação com a natureza e garantir um modelo de desenvolvimento sustentável, no clima que tem sido na Câmara dos Deputados. Isso inviabiliza que questões técnicas e científicas sejam discutidas e aí parte para definições que atendem a um ou outro setor, a uma necessidade aparente de produção de alimentos, sem considerar as alternativas técnicas para que isso ocorra sem ofender o meio ambiente.
Essa polarização que envolveu o Código Florestal e a forma como isso se resolveu em favor do setor do agronegócio é muito preocupante. O Código Florestal tem diversos pontos que precisam ser melhor ponderados pelo Senado, tem de evitar que se repitam os exageros que ocorreram na Câmara dos Deputados. Por exemplo, [é preciso] que a anistia ao descumprimento das regras do Código Florestal seja desfeita, que questões técnicas do Código sejam levadas em consideração e que tenhamos uma lei que propicie um uso adequado e racional do meio ambiente. No primeiro momento, nesse primeiro round de discussão na Câmara dos Deputados, o poder econômico se sobrepôs a uma discussão técnica fundamental.
O senhor acha que novas hidrelétricas nessa região, como a de Belo Monte, podem aumentar o número de conflitos e trazer mais violência?
Ubiratan Cazzeta – Nós estamos falando de uma região da Amazônia com um equilíbrio muito delicado de forças e qualquer alteração pode — se não for acompanhada de políticas públicas e de uma série de atuações preventivas — pode sim, redundar no aumento do desmatamento, na expulsão de populações tradicionais, na favelização ou precarização das áreas urbanas e isso tudo é um ambiente propício para o aumento da violência. Então, fazer hidrelétricas sem uma discussão mais precisa sobre as medidas para diminuir os impactos, sem trabalhar a questão dos fluxos migratórios pode, sim, gerar violência — e não apenas no contexto rural, mas especialmente no urbano, nesses núcleos que surgem a partir dos fluxos migratórios dessas obras.
Se a Comissão Pastoral da Terra (CPT) entrega uma lista de nomes de pessoas que sofrem ameaças de morte ao Ministério da Justiça, essa questão passa a ser responsabilidade do Estado? O José Cláudio Ribeiro da Silva havia anunciado publicamente, para jornais inclusive, que corria risco de vida e, mesmo assim, foi assassinado.
Ubiratan Cazzeta – Toda vez que o Estado, em qualquer nível de poder, tem notícia de que alguém vem recebendo ameaças de morte, o Estado é obrigado a investigar e apurar. Não há duvida de que há uma falha na estrutura do Estado, em todos os níveis, quando você tem alguém na condição de ameaçado de morte e não se vê uma reação do setor de segurança em relação a isso. Deve ser verificado qual o nível de cumplicidade das autoridades nesses casos. Bem objetivamente, toda vez que o Estado brasileiro toma conhecimento de uma ameaça de morte, é obrigação do Estado instaurar procedimentos para investigar a ameaça de morte e garantir a segurança dos ameaçados. Especialmente, se essa pessoa está vinculada a uma atuação na área de Direitos Humanos e de conflitos sociais, que são tão graves no nosso país.
Essa região do sul do Pará já é conhecida pelo alto número de homicídios. Por que esse número continua aumentando?
Ubiratan Cazzeta – Por causa do baixo investimento na estrutura do Estado, que não tem uma política pública de prevenção da violência. Isso envolve desde segurança pública até uma política de criação de empregos, sistema de saúde, educação, de regularização fundiária, evitar o desmatamento e o crescente interesse econômico naquela região. Principalmente, na pecuária. Você tem ali, provavelmente, o maior rebanho bovino do Brasil e isso é só um dos exemplos do avanço das atividades agrícolas naquela região. Então, você tem o avanço da fronteira agrícola, com as tensões que isso provoca com as populações que já estavam ali e sem a contrapartida de políticas globais que atendam àquela região, garantindo uma estrutura de paz.
Correio da Cidadania: Como o senhor analisa a aprovação na Câmara dos Deputados do novo Código Florestal, apresentado por Aldo Rebelo, com o afrouxamento de exigências e regras estabelecidas pelo Código anterior?
Ariovaldo Umbelino: A aprovação do Código Florestal com as modificações introduzidas pelo Aldo Rebelo vai na mesma direção de um conjunto de legislações que foram sendo afrouxadas, sob o objetivo fundamental de liberação integral para a ação do agronegócio em território brasileiro. Tais ações começaram com a lei que permitiu a introdução dos transgênicos, passaram pela permissão à retirada de madeira de dentro das florestas nacionais e também pelas MPs 422 e 458, que permitiram a legalização da grilagem na Amazônia legal.
Portanto, o projeto desse Código Florestal faz parte da história que marcou o governo do presidente Luiz Inácio e agora se estende, no sentido de desregulamentar toda e qualquer legislação que impeça a ação do agronegócio no Brasil. É o principal ponto.
E evidentemente Aldo Rebelo prestou mais um desserviço à sociedade brasileira. Primeiro, por fazer um substitutivo já ruim, e, em segundo lugar, por abrir a possibilidade de aprovação das modificações introduzidas no plenário. Elas tornaram o projeto, do ponto de vista da proteção ambiental, péssimo e infrator de todos os princípios de preservação, ainda introduzindo artigos que permitirão a imposição da lógica da terra arrasada ao meio ambiente brasileiro.
Correio da Cidadania: Com o novo Código, estados e municípios, mais vulneráveis a pressões políticas, poderão legislar sobre o uso e concessão do solo em Áreas de Proteção Permanente, uma política, dentre outras, até então sob o âmbito federal. O que pensa disto?
Ariovaldo Umbelino: Esse talvez seja o ponto mais fácil de derrubar no Supremo. A Constituição atribui à União o poder de legislar sobre o meio ambiente. É um item que começa a abrir precedentes, mas imagino que, mesmo aprovado, possa ser derrubado por ação de inconstitucionalidade. Diferentemente dos outros itens, de interesse direto ao próprio Código, que pela Constituição devem ser objeto de lei. Eles também têm problemas de introdução, mas a briga é sempre imprevisível.
De toda forma, tal medida equivale a transferir toda a legislação de terras a estados e municípios.
Correio da Cidadania: O que é impraticável na realidade, pois, tal como você já nos disse, biomas e áreas de preservação não reconhecem limites geográficos desenhados pelo homem.
Ariovaldo Umbelino: É como dizer que a legislação ambiental não é mais da alçada do governo federal. E assim, com uma lei, se revoga a Constituição. De qualquer maneira, ainda acho que esse ponto não é o mais complicado. O pior são as reduções nas APPs, a consolidação do estrago já feito nelas com a anistia a desmatadores.
Correio da Cidadania: A dispensa de reposição de reservas em pequenas propriedades, de até 4 módulos fiscais, não acarretará, ademais, uma avalanche de medidas para driblar a legislação, como, por exemplo, a partilha de propriedades?
Ariovaldo Umbelino: Sobre isso, há o problema de se apresentar tal fato como reivindicação dos pequenos proprietários. Na realidade, isso não existe tão claramente como se coloca aqui no Brasil. Como exemplo, temos o setor sucroalcooleiro, cujas propriedades nunca deixaram de continuar a ser compradas, mas seus donos nunca fundiram as escrituras dos imóveis comprados, convertendo-as em uma única. Nesse setor, portanto, existe muita área considerada pequena propriedade, cuja escritura atesta ser inferior a 4 módulos fiscais. Esses proprietários também serão beneficiados, porque a rigor a propriedade é inferior ao tamanho proposto.
Os grandes proprietários do Brasil não anexam todas as suas propriedades. Por trás da proteção aos pequenos agricultores, portanto, protegem-se os grandes. Em Ribeirão Preto e região, há até unidade industrial de usina de açúcar em cima de APP. Na verdade, é uma proteção aos grandes, a todos os setores do agronegócio.
Correio da Cidadania: Haveria como averiguar efetivamente onde estão os agricultores que são realmente familiares, que são aqueles que deveriam de fato ficar isentos dessa reposição de reservas?
Ariovaldo Umbelino: É claro. Na verdade, a permissão deveria ser competência do IBAMA, via utilização de imagens de satélite do INPE, para verificar onde há de fato uma agricultura familiar forte. Mas deveria ser estudado caso a caso, e não fazer uma legislação que afrouxa tudo genericamente.
Correio da Cidadania: Vivemos uma época com a ocorrência inegável de catástrofes produzidas por eventos da natureza, com destaque para a mais recente tragédia, a da Região Serrana do Rio de Janeiro. Além dos afrouxamentos já citados, reduzir a área de proteção nas matas ciliares e em margens de rio poderá agravar este quadro com grande intensidade?
Ariovaldo Umbelino: No caso do Rio de Janeiro, deve-se ver de forma distinta. Houve deslizamentos em áreas de intervenção humana, assim como em áreas sem intervenção. Um ano antes em Angra foi a mesma coisa. Na realidade, a proteção de tais áreas é necessária porque por natureza são áreas instáveis. Sobretudo nos biomas onde chove acentuadamente, como é o caso dessa região do Rio de Janeiro. É bom lembrar que na década de 60 o mesmo fenômeno ocorreu em Caraguatatuba. O desmatamento só agrava, mas vale dizer que mesmo assim essas áreas são instáveis.
Já a proteção das matas ciliares tem fundamentalmente a ver com a proteção das nascentes. Há estudos em Minas Gerais dando conta de que mais de 3000 nascentes do São Francisco já secaram em função do desmatamento das matas ciliares. Já há estudos no Brasil comprovando que o desmatamento da mata ciliar pode levar ao ressecamento das nascentes.
Correio da Cidadania: Quanto à anistia que se pretende dar às infrações ambientais cometidas até 2008, desde que reconhecidos os crimes pelos infratores, não vai abrir um sério precedente para o incremento do desmatamento em estados tradicionalmente agressores da preservação ambiental?
Ariovaldo Umbelino: Bom, é claro que devemos classificar esta medida como gravíssima, não há como não usar essa palavra. Mas no Brasil nenhum infrator é multado! E quando o é, o Estado não cobra a multa.
Por exemplo: os proprietários que não pagaram o Imposto Territorial Rural nunca foram multados, processados. Se lembrarmos do Raul Jungmann, no governo FHC, quando assumiu o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), a primeira modificação legal que ele fez foi introduzir o imposto territorial progressivo. Ou seja, se o dono não paga o imposto, ele aumenta no ano seguinte, progressivamente, até que um dia a multa supere o próprio valor do imóvel. Mas nunca alguém foi processado. O Brasil tem leis boas, o problema sempre foi, infelizmente, o cumprimento, a execução do Estado para que elas se cumpram de fato.
Correio da Cidadania: Mas isso não pode se agravar diante de tamanha liberalização?
Ariovaldo Umbelino: A anistia é um ato declarado disso tudo. Mas, quando o presidente Luiz Inácio fez o decreto que legalizou os transgênicos, também perdoou quem tinha importado e usado ilegalmente sementes transgênicas até então. A história brasileira é de condescendência com as ações ilegais.
Se eu infrinjo a lei, sou multado e anistiado, posso continuar infringindo a lei. O ponto é que, com ou sem esse novo Código Florestal, aconteça o que acontecer, o desmatamento vai continuar, porque não há fiscalização e não tem governo que faça cumprir as ações contra a infração da lei.
E nesta questão se inclui ainda o Judiciário. Sabemos que o Judiciário não julga nada ou julga a favor dos grandes. Como exemplo, lembro a Cosan, que foi incluída na lista suja do trabalho escravo. No dia seguinte, um juiz foi lá e deu liminar para que o nome da empresa fosse retirado da lista suja. A justiça brasileira também nunca garantiu o cumprimento e o respeito às leis.
Correio da Cidadania: O que o senhor diria a respeito dos argumentos de cunho nacionalista proferidos por Aldo Rebelo e outros defensores da proposta aprovada?Ariovaldo Umbelino: Quem fez o texto do substitutivo ao Código Florestal apresentado por ele foi uma advogada da CNA, Confederação Nacional da Agricultura, informação conhecida pelo Brasil todo. Em segundo lugar, se formos olhar a lista dos seus doadores de campanha, veremos que constam as principais empresas do agronegócio.
Portanto, ele é um vendido. Como diria Brizola, "mais um vendilhão da pátria".
Correio da Cidadania: O que pensa do assassinato do casal José Claudio e Maria, militantes do campo, às vésperas da votação do novo Código? Podemos esperar por tempos ainda mais violentos no campo, com a aprovação desse Código Florestal?
Ariovaldo Umbelino: Sim, podemos. Se olharmos os dados da CPT, a Comissão Pastoral da Terra, de assassinatos no campo no ano passado e também em 2009 verificamos que há aumento no número de crimes. Quer dizer, entre 2009 e 2010 já ocorreu aumento dos assassinatos, após as MPs 422 (regulariza propriedades de até 1500 hectares na Amazônia Legal) e 458 (visa acelerar regularização de tais propriedades, apelidada de "MP da Legalização da Grilagem", por igualar posseiros e grileiros) e o programa Terra Legal (regulariza posses na Amazônia sem garantir fiscalização à propriedade, a fim de comprovar as dimensões declaradas, entre outras irregularidades abrigadas também nas MPs citadas).
A realidade, portanto, é que já houve conseqüências, e a aprovação desse novo Código, evidentemente, só vai aumentar a violência do campo.
Correio da Cidadania: O que essa vitória da bancada parlamentar dominada pelos empresários do latifúndio representa do atual estado de nossa política parlamentar e institucional?Ariovaldo Umbelino: Primeiro, devemos lembrar a realidade cruel: a maior parte dos nossos representantes no Congresso é favorável a essa desregulamentação geral de leis que o agronegócio entende como obstáculos restritivos. Mas não é só a bancada ruralista a responsável. O Aldo Rebelo não precisava ter feito o substitutivo. Já foi líder de bancada do governo, presidente da Câmara... Podia ter feito diferente. Aliás, a ação dele nesse episódio e na demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em 2009, mostra que de comunista ele não tem mais nada.
A verdade é que a maior parte de nossos parlamentares tem compromisso com o agronegócio. E estão fazendo valer o poder que têm, votando favoravelmente ao agronegócio, inclusive os partidos de esquerda, que entendem que esse estilo de agricultura e o capitalismo devem continuar se expandindo, pois geram empregos, divisas pra balança comercial... A mesma concepção que vem desde o período colonial e que faz do Brasil uma economia primário-exportadora.
Correio da Cidadania: Acredita que a reforma do Código Florestal possa ser barrada, ou minimamente alterada, no Senado? Em um momento em que o governo está refém de uma crise política, novamente protagonizada por Palocci, terá a presidente Dilma condições de reverter os pontos mais lesivos?
Ariovaldo Umbelino: Eu acho que não. Acho que o Senado oferece o risco de piorar ainda mais a situação. E se a Dilma for lá e vetar, como já está declarando, o que vai acontecer é que vão derrubar o veto. E do ponto de vista político o estrago será maior. O caso do Palocci só torna o jogo político mais agudo. O governo do Luiz Inácio também foi refém do Congresso durante oito anos. Esse não será diferente.
Correio da Cidadania: O que esperar do governo Dilma na área ambiental e no que se refere à política agrária?
Ariovaldo Umbelino: Até o momento, ela não tornou públicos os seus planos. Na área agrária, só conheço o primeiro documento que circulou, do MDA, o Ministério do Desenvolvimento Agrário, que simplesmente abandona de forma definitiva a reforma agrária como política pública no Brasil. Nos outros setores, o único ponto em que há algum esboço é na questão que se refere ao combate à pobreza extrema.
Aliás, o Brasil não tem miseráveis, mas "pobres extremos". Como se não fosse a mesma coisa. E evidentemente o desejo dela de fazer algo nessa área é maior. Mas também não há plano divulgado.
Correio da Cidadania: Mas sem uma reforma agrária autêntica, esse objetivo também fica dificultado...
Ariovaldo Umbelino: Porém, quem colocou a questão da reforma agrária na pauta dos governos nos últimos 30 anos foram os movimentos sociais. E eles abandonaram essa bandeira. Se olharmos o abril vermelho deste ano, vamos ver que foi verde e amarelo.
Correio da Cidadania: O que achou do papel da mídia na apresentação da discussão?
Ariovaldo Umbelino: A mídia brasileira, sobretudo a grande mídia, comercial, sempre foi favorável ao agronegócio, isso quando não tinha – ou tem – interesses diretos no agronegócio. Pra mim, particularmente, não foi novidade alguma. Continuaram fazendo o mesmo também em outros temas, como mostra seu combate feroz aos movimentos sociais. É uma mídia inteiramente comprometida com o agronegócio.
Gabriel Brito é jornalista; Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania.
É compreensível que em um país de dimensões tão grandiosas, no contexto da tropicalidade, surjam muitas ideias e propostas incompletas para atenuar ou procurar resolver problemas de regiões críticas. Entretanto, é impossível tolerar propostas demagógicas de pseudotécnicos não preparados para prever os múltiplos impactos sociais, econômicos e ecológicos de projetos teimosamente enfatizados.
Nesse sentido, bons projetos são todos aqueles que possam atender às expectativas de todas as classes sociais regionais, de modo equilibrado e justo, longe de favorecer apenas alguns especuladores contumazes.
Nas discussões que ora se travam sobre a questão da transposição de águas do São Francisco para o setor norte do Nordeste Seco, existem alguns argumentos tão fantasiosos e mentirosos que merecem ser corrigidos em primeiro lugar. Referimo-nos ao fato de que a transposição das águas resolveria os grandes problemas sociais existentes na região semi-árida do Brasil.
Trata-se de um argumento completamente infeliz lançado por alguém que sabe de antemão que os brasileiros extra-nordestinos desconhecem a realidade dos espaços físicos, sociais, ecológicos e políticos do grande Nordeste do País, onde se encontra a região semi-árida mais povoada do mundo.
O Nordeste Seco, delimitado pelo espaço até onde se estendem as caatingas e os rios intermitentes, sazonários e exoreicos (que chegam ao mar), abrange um espaço fisiográfico socioambiental da ordem de 750.000 quilômetros quadrados, enquanto a área que pretensamente receberá grandes benefícios abrange dois projetos lineares que somam apenas alguns milhares de quilômetros nas bacias do rio Jaguaribe (Ceará) e Piranhas/Açu, no Rio Grande do Norte. Portanto, dizer que o projeto de transposição de águas do São Francisco para além Araripe vai resolver problemas do espaço total do semi-árido brasileiro não passa de uma distorção falaciosa.
Um problema essencial na discussão das questões envolvidas no projeto de transposição de águas do São Francisco para os rios do Ceará e Rio Grande do Norte diz respeito ao equilíbrio que deveria ser mantido entre as águas que seriam obrigatórias para as importantíssimas hidrelétricas já implantadas no médio/baixo vale do rio – Paulo Afonso, Itaparica e Xingó.
Devendo ser registrado que as barragens ali implantadas são fatos pontuais, mas a energia ali produzida, e transmitida para todo o Nordeste, constitui um tipo de planejamento da mais alta relevância para o espaço total da região.
Segue-se na ordem dos tratamentos exigidos pela idéia de transpor águas do São Francisco para além Araripe a questão essencial a ser feita para políticos, técnicos acoplados e demagogos: a quem vai servir a transposição das águas?
Os “vazanteiros” que fazem horticultura no leito dos rios que “cortam” – que perdem fluxo durante o ano-serão os primeiros a ser totalmente prejudicados. Mas os técnicos insensíveis dirão com enfado: “A cultura de vazante já era”. Sem ao menos dar qualquer prioridade para a realocação dos heróis que abastecem as feiras dos sertões. A eles se deve conceder a prioridade maior em relação aos espaços irrigáveis que viessem a ser identificados e implantados. De imediato, porém, serão os fazendeiros pecuaristas da beira alta e colinas sertanejas que terão água disponível para o gado, nos cinco ou seis meses que os rios da região não correm.
Um projeto inteligente e viável sobre transposição de águas, captação e utilização de águas da estação chuvosa e multiplicação de poços ou cisternas tem que envolver obrigatoriamente conhecimento sobre a dinâmica climática regional do Nordeste. No caso de projetos de transposição de águas, há de ter consciência que o período de maior necessidade será aquele que os rios sertanejos intermitentes perdem correnteza por cinco a sete meses.
Trata-se, porém, do mesmo período que o rio São Francisco torna-se menos volumoso e mais esquálido. Entretanto, é nesta época do ano que haverá maior necessidade de reservas do mesmo para hidrelétricas regionais. A afoiteza com que se está pressionando o governo para se conceder grandes verbas para início das obras de transposição das águas do São Francisco terá conseqüências imediatas para os especuladores de todos os naipes.
O risco final é que, atravessando acidentes geográficos consideráveis, como a elevação da escarpa sul da Chapada do Araripe – com grande gasto de energia!-, a transposição acabe por significar apenas um canal tímido de água, de duvidosa validade econômica e interesse social, de grande custo, e que acabaria, sobretudo, por movimentar o mercado especulativo, da terra e da política.
No fim, tudo apareceria como o movimento geral de transformar todo o espaço em mercadoria.
*Aziz Ab´Sáber é geógrafo, professor e escritor. Professor-Doutor em Geografia Física (USP), ganhador do prêmio Ciência e Meio Ambiente da Unesco, também foi presidente da SBPC e do Condephaat e diretor do Instituto de Geografia da USP.
Do Brasil de Fato
A grande imprensa do Brasil, com destaque para a Globo, retoma a proposta internacional de tratar o Haiti como Estado falido. Ou seja, nação incapaz de se organizar e reger por si só, tendo que ser monitorada, para seu bem. Como está ocorrendo agora! Uma volta aos tempos dos protetorados. A reconstrução pode constituir balão de ensaio para uma gestão não-nacional de territórios por órgãos internacionais, não-estatais etc. As grandes catástrofes são os melhores momentos para o capital realizar reorganizações estruturais de populações e recursos. Nuvens terríveis cobrem os horizontes do povo haitiano. Os trabalhadores e todos os homens e mulheres de bem do país devem se mobilizar contra isso. A primeira exigência deve ser a imediata saída das tropas de ocupação brasileiras do Haiti, substituídas por médicos, enfermeiros, engenheiros, agrônomos. Temos que ajudar a plantar a vida, não a morte, nesse país glorioso. Se o Nelson Jobim quiser voltar fantasiado ao país sofrido, que seja de médico!
Da revista Carta Capital
Um dos maiores pesquisadores brasileiros, aos 85 anos o geógrafo Aziz Ab’Saber acha que falta dedicação do País para lidar com a Amazônia, ponto central de suas preocupações. Segundo Ab’Saber, mais do que soluções isoladas, é preciso pensar na região em termos interdisciplinares, sua grande bandeira na carreira de meio século como professor na USP, hoje aposentado. Integrante do grupo de intelectuais que apoiou Lula em 2002, o geó-grafo acabou por se afastar do governo diante de divergências, sobretudo quanto ao tratamento dos temas ambientais.
CartaCapital: Em sua opinião, o que poderia ser feito, em termos governamentais, na área de ciência e tecnologia?
Aziz Ab’Saber: Quando se fala em ciência e tecnologia, às vezes a pessoa fica pensando em pesquisa nuclear, foguetes... Não. O que me preocupa é a degradação, é como revitalizar os solos das regiões que foram muito devastadas na Amazônia para poder ter uma agricultura economicamente sustentável – não gosto desse termo, mas neste caso é bem isso que preciso dizer. É um fato indispensável, porque as áreas devastadas são muito grandes e muito contínuas, ao longo de estradas, ramais, sub-ramais e espinguelas de peixe, como são chamadas popularmente na região. Falando sobre isso com pessoas que conhecem a agricultura tropical em áreas florestadas, a gente chegou à conclusão que tem de ter dois pontos de partida para as áreas derruídas. Primeiro, a borda da floresta. A partir dela, pode-se ir plantando espécies vegetais que tenham algum valor econômico e nutritivo: açaí, pupunha... E quando isso começar a florescer, ir mais para dentro da área degradada e plantar mandioca, por exemplo. Existe ainda a possibilidade de uma tecnologia especial no sentido de abranger áreas maiores do que apenas a borda da floresta. Essas áreas maiores é que darão força aos fazendeiros, aos agricultores tradicionais da região e outros que venham de fora, por que não? Senão eles continuam cortando por cortar. O problema da Amazônia hoje tem de ser percebido no sentido neocapitalista do mundo e do Brasil. Todo espaço virou mercadoria, diziam os jovens geógrafos de São Paulo há muitos anos. E eles têm mais do que razão.
CC: Como cientista, que conselho daria para quem assumir o governo em 2011?
AA: Que no tratamento da Amazônia, em vez de ficar fazendo reunião aqui e acolá, e sendo fotografado na margem de um rio ou no centro de uma cidade, poderia pensar nos projetos que realmente pudessem servir à região e, ao mesmo tempo, deter a devastação florestal. Atualmente, com as imagens de satélite e do Google Earth que permitem que se vejam as cidadezinhas, os agrupamentos no Alto Solimões, na fronteira com a Colômbia e Venezuela, é possível perceber o que está acontecendo e agir para barrar os acontecimentos mais graves do desmatamento.
CC: Existe alguma maneira de atrair mais jovens para a pesquisa científica?
AA: Sim, se o governo puder convocar a universidade, dizendo: eu quero a presença de vocês como pesquisadores e como planejadores. E forçar as universidades a terem encontros de planejamento interdisciplinares. Ou seja, o currículo da área de planejamento teria de ter a presença de geógrafos, geólogos, agrônomos, sociólogos, sanitaristas, médicos. Sete ou oito disciplinas diferentes para que houvesse uma diluição dos fatos que dizem respeito ao entendimento básico dos assuntos a ser discutidos. Cada projeto tem de ter estudos básicos feitos por uma equipe, não por uma pessoa somente. Minha tarefa é indicar isso, com a idade que estou. Ainda não desisti de que as universidades sérias tenham cursos de planejamento, baseados em equipes interdisciplinares e com foco no entendimento da realidade física, ecológica, social e política de cada área. Nesse sentido, tenho feito um trabalho sobre a divisão da Amazônia a favor de planejamentos sub-regionais, onde usei muito o conhecimento de viagens. Se o governo quisesse influenciar os jovens, poderia organizar excursões de diversas universidades sérias, levando sempre essa equipe interdisciplinar para fazer algumas observações em relação a diferentes setores, naquela ideia básica de estudar o nacional, o regional e o setorial: o que está havendo em relação à educação, à saúde pública – coisa seriíssima nessa região –, as condições sanitárias, a possibilidade de transporte de produtos etc. Depois, esses grupos se reuniriam em Brasília para discutir o que viram, quais os problemas mais comuns e quais as possibilidades de indicar projetos simples e diretos para atender a questões que às vezes não são tão graves quanto a gente pensa, mas que são gravíssimas porque não há governo no Brasil.
CC: Era mais fácil ser pesquisador na sua época ou agora?
AA: Na minha época era extremamente difícil. Minha mulher outro dia me criticou: “Você foi um bobalhão, andou por cima de caminhões, de sacos de arroz e sal para ir até Aragarças, no sudoeste de Goiás, quase sem dinheiro, e fez assim a vida inteira, usando seus próprios recursos ou aproveitando alguma viagem para algum lugar aonde ia dar palestra. Isso foi um erro na sua vida porque poderia ter feito muito mais se tivesse recursos”. E ela tem toda razão. Ela me critica também por não ter tido oportunidade de conhecer outras áreas do mundo: África do Sul, Saara, Austrália, Finlândia, Japão... É obrigação dos governantes darem possibilidades de viagens para quem trabalha e produz. Os governantes são tão... Não vou dizer palavrão, mas nem para (a cúpula do clima de) Copenhague eles levam os melhores, só aqueles que estão mais próximos do eleitoreirismo. Ninguém nunca me perguntou se eu poderia ir a Copenhague. Claro que aos 85 não posso, mas um dia desses a OAB de Brasília pediu que eu fosse a Manaus para discutir a Amazônia e tive uma participação da qual me orgulho muito.
CC: Também em termos de salários, deve ser revisto o que se paga ao pesquisador?
AA: Não, tem de se rever a partir do professor e fazer exigências maiores em relação à cultura dele, desde o primário. A educação tem de ser pensada de uma maneira geral. Até os 5 anos e meio, 6, é um quinto de educação que dá destreza mental para a criança. Quando ela vai para o fundamental, depois do pré é muito importante, porém reduzido, tem de estar preparada. E mais tarde vem a universidade, que tem outros padrões de conhecimento e que, sem pesquisas acrescentadas aos estudos que recuperam todos os conhecimentos acumulados, não vale coisa nenhuma. Mas a universidade é pensada como sendo apenas um projeto de se tirar uma assinatura. Nesse campo o governo é zero e os educadores que ficam em torno dele não são tão bons quanto deveriam ser.
Em entrevista ao jornal argentino Pagina 12, o pesquisador marxista Rolando Astarita defende que a crise não se deu só por causa de um mau funcionamento do mercado financeiro, mas da economia em seu conjunto. "Produziu-se o que Marx chamava “uma pletora de capital”: capital líquido abundante, taxas de juros muito baixas (dirigidos pelo Federal Reserve e pela entrada de capitais que buscavam refúgio nos EUA) e uma super-oferta do crédito. Esses capitais líquidos terminaram no setor da construção, onde encontraram um campo de expansão relativamente rápido. E terminou explodindo".
Natalia Aruguete - Página 12
Diversas posturas econômicas, desde progressistas a heterodoxas, afirmam que estamos numa época de hegemonia do setor financeiro sobre o produtivo e numa hipertrofia do capital especulativo, que deixou a descoberto o estancamento da economia mundial nos últimos 30 anos. Num diálogo com o caderno Cash, suplemente econômico do Página 12, o pesquisador marxista Rolando Astarita assinalou que, na realidade, no último quarto de século houve uma expansão mundial do capitalismo, que a distância entre ricos e pobres não impediu o crescimento dos mercados e que a crise não se deu só por um mal funcionamento do mercado financeiro, mas da economia em seu conjunto. “Há que se pensar o tal do capital fictício com parâmetros; ele não pode nos fazer perder a análise estrutural”, explicou.
Pagina12: Acreditas que a crise financeira marca a queda da ditadura das finanças?
Roland Astarita: Não vejo que haja uma ditadura das finanças, mas um domínio do capital em geral, acentuado de maneira muito profunda a partir dos anos 80. No último quarto de século, o disciplinamento do capital sobre as classes trabalhadoras operou através de mecanismos diretos, mas também do mercado, com políticas monetárias duras, aberturas comerciais, flexibilização laboral. Mas não vejo distinção de setores dentro do capital.
P12: No entanto, o crédito e as dívidas cresceram em todo o mundo. Isso pode ter afetado o desenvolvimento da economia real?
RA: Nunca houve desenvolvimento do capitalismo sem desenvolvimento do crédito e de uma monetarização da economia. Na perspectiva de Marx, o crédito é uma alavanca da acumulação de capital. Isto também se vê na fase que vai de 1890 a 1929. Na China, junto à expansão capitalista cresceram seus índices monetários e a participação dos mercados financeiros. Mas o crédito também potencializa as possibilidades de especulação, de sobre-acumulação e de quebradeira. Marx trabalhava com tendências e contra-tendências. Hoje, ao contrário, toma-se só um aspecto da realidade.
P12: Alguns sustentam que o crescimento do crédito prova o estancamento do sistema capitalista.
RA: A idéia de que o sistema capitalista está estancado há 25 anos não resiste à análise da realidade. Nos últimos 30 anos a economia capitalista teve taxas de expansão superiores a 3% em nível mundial, ainda que tenham sido desiguais: o Japão está estancado desde 1992 e a Europa teve um crescimento débil. Houve uma expansão geográfica do sistema capitalista, que entrou na China, no Leste Europe e na Rússia, e um aprofundamento das relações capitalistas. O aumento da produtiviade na economia dos EUA desde 1995 foi maior do que 3% ao ano. O crédito atua como uma potencialização de tendências do sistema e muitas vezes permite que um ciclo econômico se expanda para além de suas possibilidades. Em 2001 os EUA sofreram uma recessão suave. A economia cresceu 0,8% e o crédito lubrificou os mecanismos econômicos. Mas a recuperação de 2002 foi débil, com pouca geração de postos de trabalho e débil recuperação do investimento.
P12: Nesse contexto o crédito migrou para que setores?
RA: Para a construção residencial e para o consumo em geral, não para as empresas. Desde 2000 as empresas dos EUA e do G7 diminuíram sua dependência do sistema financeiro. Houve um excesso de poupança e as empresas diminuíram suas dívidas com os bancos. Inclusive, usaram parte dessa liquidez para recomprar suas ações. Não houve uma grande expansão do investimento produtivo, mas tampouco uma dependência do capital produtivo em relação ao financeiro. As relações de dependência voltaram em meados dos anos 70. Não se pode dizer que fosse uma crise como a diagnosticada a la Hyman Minsky, um autor keynesiano que sustentava que as crises se produzem porque as empresas caem num sobre-endividamento e pagam dívida com dívida até que a situação exploda.
P12: No entanto, houve uma “financeirização dos consumidores”, com a qual se amorteceu a crise de 2001.
RA: E ademais ajudou a recuperação de 2002. Isso é certo. O equivocado é pensar que isso atuou isoladamente. Em 2001, a superabundância de capital líquido e o investimento débil ocorreram porque a taxa de rentabilidade do capital vinha se debilitando desde 1996/7. Esse é o fundo do problema. Produziu-se o que Marx chamava “uma pletora de capital”: capital líquido abundante, taxas de juros muito baixas (dirigidos pelo Federal Reserve e pela entrada de capitais que buscavam refúgio nos EUA) e uma super-oferta do crédito. Esses capitais líquidos terminaram no setor da construção, onde encontraram um campo de expansão relativamente rápido. E terminou explodindo.
P12: Também se diz que, desde os anos setenta, o mundo assiste a uma crise de superprodução combinada com uma crise de subprodução.
RA: Há dois tipos de explicações da crise. Uma diz que o problema da crise deu-se com as finanças. Outra, que a Argentina repete bastante, que se deve a uma importante desigualdade de renda, o que produziu uma crise de consumo por falta de demanda. Creio que isto tampouco explica o que aconteceu. No último quarto de século houve um processo de “proletarização”, enormes massas da população se incorporaram no exército de assalariados. Os casos mais ressonantes são China e Índia. Isso supõe uma ampliação de mercados, enquanto houver crescimento nos lucros. Segundo a The Economist, nos Estados Unidos 0,1% da população ganha 77% vezes mais do que 90% da população restante. Nos anos 70 essa diferença era de 1 para 20. Também na China a desigualdade cresce. Mas não é certo que se a desigualdade cresce, crescem os mercados.
P12: Neste crescimento da economia capitalista, como se compõe o produto bruto no mundo?
RA: No caso dos Estados Unidos, desde a recuperação de 2001 se geraram fenômenos de sobre-acumulação de capital e de queda da taxa de rentabilidade. Esse é o pano de fundo da crise. Sobre isso o fator financeiro atuou, mas também o crescimento desproporcional na construção residencial, entre 2001-2007. Sua participação no PIB passou de 4,2% a mais de 6%. Isso gera tensões, porque um setor está crescendo em taxas muito superiores ao resto, e num contexto em que os investimentos se mantêm débeis. Isso potencializou o sistema de crédito e deu-se uma sobre-expansão do setor em relação às necessidades da economia.
P12: Pegando apenas o setor financeiro, o crescimento da sua participação no PIB dos EUA implicou uma mudança ou uma continuidade em relação a etapas anteriores?
RA: Não me parece que a taxa de crescimento tenha se acelerado desde 1979-80. Entre 1895 e 1929, a taxa de crescimento desse setor nos EUA foi superior a dos últimos vinte anos. Com a crise dos anos 30, o setor financeiro diminuiu sua participação na economia e recuperou terreno desde a década de 50, com um crescimento relativamente constante desde 1960. Não houve uma queda importante nos anos 80, ainda que as taxas de juros tenham aumentando muito: entre 1979 e 1985, o peso dos juros nos balanços empresariais subiu consideravelmente. Isso expressa parte da tese da financeirização, mas não se converteu em algo permanente.
P12: Por que?
RA: Prognosticou-se que iria se produzir uma punção permanente do setor financeiro sobre o lucro empresarial, mediante a taxa de juros. E que isso debilitaria o setor produtivo e levaria ao estancamento. Mas insisto que o peso dos juros sobre o setor produtivo tendeu a baixar. Segundo dados do Official Bureau of Economic Analysis dos Estados Unidos, entre 2006 e princípios de 2007, esse peso estava nos níveis de 1970, que era uma época keynesiana. Penso que esta é uma crise muito grave, muito profunda, mas estamos longe de uma crise como a dos anos 30.
P12: Então acreditas que não há um predomínio do capital fictírico sobre o produtivo, em detrimento da economia real?
RA: Há que se perguntar até que ponto isso é novidade. Quando houve expansão de capital no sistema capitalista, na Bolsa de Valores houve sobrevalorizações. Tradicionalmente, metade disso estaria em 10 anos de price earning (1). No momento de euforia das bolsas, alcançou 20 ou 30 anos. Isso ajuda à instabilidade do sistema capitalista, já que provoca inflação dos lucros que desaparecem da noite para o dia, mas esses lucros não crescem à margem do trabalho produtivo.
P12: Acreditas que a crise atual reflita esse mecanismo?
RA: Aqui estouraram ativos financeiros ligados ao crédito, que se havia sobrevalorizado. O estouro reflete que a economia estava funcionando mal. Há que se pensar o tal do capital ficítcio com parâmetros; ele não deve nos fazer perder a análise estrutural. Ao extrair a mais valia e a realizá-la nos mercados, pode haver inflações que terminam arrebentando. Mas, à medida que a instabilidade se agrava, as crises não se explicam por si mesmas.
P12: Pode estabelecer-se alguma relação entre o excesso de liquidez e a tendência à financeirização da economia?
RA: Esse excesso de liquidez deveu-se à debilidade do investimento produtivo. Em determinado omento, houve setores que super-acumularam. Os neoclássicos interpretaram esse fenômeno como uma decisão das instâncias domésticas, das famílias, quando, na realidade, foi uma debilidade no investimento. Um exemplo é a queda de investimento na Ásia – com exceção da China – depois da crise de 1997-98. Essa massa de capital líquido pressiona sobre o setor financeiro em busca de sua valorização. Mas há que se destacar a relação de causalidade. O crescimento deste setor é consequência da acumulação de capital, ele não opera por fora do conjunto dos problemas dessa acumulação. A interpretação dos neokeynesianos – que hoje são mainstream – é a do acelerador financeiro. Quer dizer, o uso dos ativos financeiros como garantias em empréstimos, até que, em determinado momento, produza-se um choque que se potencializa através do mecanismo financeiro.
P12: E qual a tua opinião sobre esse diagnóstico?
RA: Há aspectos de realidade importantes, mas não analisa a quê se deve o choque, de onde vem. É o próprio sistema de competição capitalista que obriga a um banco a competir com outros para oferecer mais rentabilidades. Se não os ligamos aos problemas de fundo, não entendemos por que essas especulações podem explodir numa brutal crise financeira, que nem sempre afeta a economia. Por exemplo: o crash de Wall Street de 1987 não se tornou uma crise global e foi a segunda grande queda da bolsa dos Estados Unidos.
P12: No encontro do G20 propô-se uma maior regulação dos mercados como forma de sustentar a situação econômica. Crês que essa seria uma solução?
RA: No G20 a regulação dos mercados foi defendida como uma grande questão para depois da rise. Hoje a discussão é até que grau há de se ter intervenção estatal e se medidas protecionistas serão ou não aplicadas. Todo mundo pede que não haja medidas protecionistas mas, no fundo, muitos as aplicam. Sobre isso gostaria de fazer duas reflexões. Os mercados financeiros e capitalistas pressionam para afastar as regulações. As regulações da Basiléia estabeleceram que os bancos deviam ter certa ratio de capital em relação a sua carteira de ativos. Mas os bancos criaram “Sociedades de Propósitos Especiais” (espécie de fideicomisso) para armar suas operações por fora do balanço e, assim, comprar papéis que essas entidades emitiam.
P12: E a segunda reflexão?
RA: Lênin dizia que estavam bem as consignas, mas há que se pensar em quem as aplica. No G20, defendeu-se que o FMI deve retomar o poder de regular. Esse organismo está governado pelas grandes potências, os grandes banqueiros e o capital internacionalizado. Vai responder a esses interesses. É um controle dos altos comandos do capital para evitar desequilíbrios. Não há controles em abstrato.
Da Agência Carta Maior
Publicado no suplemento CASH, do jornal argentino Pagina 12, em 17 de maio de 2009. Para conhecer o trabalho, os interesses e parte das publicações do professor Rolando Astarita, ver a sua página: www.rolandoastarita.com
Tradução: Katarina Peixoto
(1) Ratio Price Earning é um indicador (normalmente designado por P/E ou PER) de análise do valor de uma ação. É a medida estabelecida entre o preço da ação e os lucros das empresas. Quanto mais elevado for o seu valor, mais cara deverá estar a ação e vice-versa. Exemplo: se a Empresa X estiver cotada a € 60 por ação e os seus lucros forem de € 3 por ação, o seu PER é de 20 (60/3). Isto significa que os investidores estão pagando € 20 por cada € 1 de lucros da Empresa X. Esta relação é também conhecida por stock multiple, significando que a Empresa X está a negociar num múltiplo de 20 vezes os seus lucros. Este é um indicador muito utilizado pelos analistas e um dos mais conhecidos dos investidores. Na verdade, é muito frequente ver na imprensa a referência a uma ação como cara ou barata apenas por referência ao PER. Veja-se a estratégia de investimento boas & baratas divulgada pela Revista Carteira, em que um dos critérios para selecção das acções é um PER inferior a 14, dado que este representa aproximadamente a média a nível mundial. Porém, a realidade não é assim tão clara e de simples análise. O PER tem limitações e devem ser conhecidas do investidor, de modo a que não se tomem decisões apenas com base nele. N.deT. Com http://www.analistafinanceiro.com/fiscal-financeiro/o-price-earnings-ratio-pe-ou-per/